31/10/25

Os chungas têm de cumprir a lei


 

O partido Chunga apresentou um projecto-lei que estabelece normas de vestuário para certos segmentos da sociedade. 

Como sabemos, os partidos existem para promover os interesses de classe de determinados grupos sociais e propor um projecto de sociedade concordante com esses interesses. 

No que diz respeito aos interesses de classe, a natureza do Chunga é bem conhecida e muito clara: defende os interesses de toda a espécie de meliantes – gatunos, burlões, mercenários, carteiristas, carroceiros, caceteiros, assassinos. 

Já quanto ao projecto de sociedade, o Chunga emite sinais contraditórios – uns legítimos, outros de duvidosa legitimidade – que desorientam o debate político e deixam os tribunais à toa quanto à sua legalidade/legitimidade. 

A nova proposta do Chunga visa completar a já aprovada lei que proíbe o uso de burcas e niqabs. Essa lei, segundo o Chunga, é muito incompleta e falha parcialmente os objectivos propostos. Entre outras normas de vestuário, o projecto-lei proíbe o uso, em lugares públicos, de: 

  • óculos escuros, que impedem a identificação automatizada (além de serem muito desconfortáveis para os interlocutores, pois quando falamos com uma pessoa de óculos escuros, em vez de lhe vermos os olhos, vemos a nossa própria imagem); 
  • véus, lenços de cabeça e outros adereços que tapem as orelhas, também estas usadas para identificar roboticamente as pessoas; 
  • calças justas nos quadris, por destacarem os glúteos das mulheres e o pacote dos homens, o que é atentatório da moral e dos bons costumes propugnados pelo Chunga; 
  • várias outras normas de indumentária derivadas do «princípio da igualdade e da laicidade do Estado», da «igualdade entre homens e mulheres», dos «princípios de liberdade, igualdade e dignidade humana» e do «respeito pela dignidade das mulheres»; neste sentido, por exemplo, os homens passarão a ser obrigados a usar saias, pelo menos duas vezes por semana, devendo para o efeito picar o ponto, por assim dizer, exibindo-se diante de uma câmara de vigilância em lugar público e levantando a saia para provar que são homens. 

De início, esta aparente teima do Chunga em impor normas de vestuário deixou-me perplexo. O que teria isso a ver com os interesses chunguistas? Além disso, aparentemente, as novas normas legais seriam discriminatórias, o que é contrário à lei geral. 

A minha perplexidade desfez-se casualmente, ao viajar na carreira do eléctrico 28, em Lisboa, onde pude observar a extraordinária técnica coordenada de dois carteiristas que, recorrendo a apertos e empurrões, conseguiram separar os homens das mulheres, os portadores de câmaras fotográficas, os portadores de mochilas, os portadores de bolsas de mão, etc., facilitando assim o trabalho do elemento da equipa encarregado de surripiar os haveres dos turistas. É, de facto, uma magnífica demonstração de mestria técnica que me fez compreender a necessidade imperiosa (do ponto de vista chunguista, entenda-se) de separar a população em grupos, de forma a melhor ser surripiada. 

Como toda a gente sabe, um véu que cubra a cara pode ser substituído por uma máscara higiénica, com boa justificação profiláctica. Por conseguinte, é fácil deduzir que o que está em causa no projecto de lei chunguista não é a segurança pública, mas sim a divisão da população em grupos estanques, mesmo quando não existe oposição de interesses entre esses grupos, facilitando assim a defesa dos interesses das classes representadas pelo Chunga. 

Desse ponto de vista, as propostas do Chunga são perfeitamente legítimas, pois correspondem à defesa dos interesses de classe dos meliantes. A proposta inicial contemplava uma excepção para os chungas, que poderiam usar máscara quando se encontrassem em serviço. Contudo, por imposição dos constitucionalistas e sob o argumento de que até os chungas têm de cumprir a lei, o partido teve eliminar essa excepção.

09/07/25

A meretriz e a fadista, sentadinhas nas brumas da memória


(gerado por IA, com vaga inspiração em «O Fado», de José Malhoa)

Tanto quanto me lembro, havendo embora a hipótese de a minha memória ser meretrizoeira, na década de 1950 um dos ordenados dos meus pais ia para a renda da casa, outro para comida e demais urgências, e o terceiro – porque o meu pai teve dois empregos e 4 horas de sono por dia durante 20 anos – ia para os pequenos extras, como fossem os meus calções, os meus livros de estudo e os didácticos passeios familiares pelo campo e pela praia no fim de semana. Digam-me vossemecês que diferenças notam agora em relação ao grosso das gentes.

Tanto quanto me lembro, desta feita com a lítica memória da minha idade adulta, durante 50 anos trabalhei sem que os meus empregadores – nem eu, por falta de cabedais para as urgências – descontassem para a segurança social. Daí que, ao atingir a idade da reforma, a minha pensão fosse de 300 euros – menos de metade da renda da casa, por essa época. Hoje, 10 anos passados e graças à interesseira generosidade do actual primeiro-ministro (pois não é este um país de secos escrotos, onde os velhos constituem a maioria dos eleitores e as crianças já não brotam?), a minha pensão duplicou – do mesmo passo que as rendas, em Lisboa, triplicavam.

Porque pensam vossas senhorias que até alguns anos atrás havia no centro de Lisboa tantos velhotes e viúvas recebendo pensões de miséria e ainda assim pagando sua renda de casa? Já vos digo: porque as rendas eram muito baixas, pois claro. Pobres senhorios, que recebiam tão pouco!, pobres inquilinos, que recebiam tão pouco!, pobres de todos nós, que todos vivíamos sob a lei do «pobrezinho mas honrado»!

Sucede, porém, que alguma coisa fez adornar a barca de toda esta formidável honradez. Vão lá vossemecês espreitar agora as mesas do Príncipe Real, da Estrela e de outros jardins, e digam-se quantos velhotes vêem por lá a jogar a bisca. Nenhum provavelmente. Pode ser neste caso a percepção tão meretriz como a memória da minha infância, mas à primeira vista encontro duas explicações para tal evasão gerôntica: 1) os gotosos velhos abandonaram os jardins desta vida, como manda a dita; 2) ainda que mancos, gotosos e desgostosos, foram corridos (com ou sem indemnização) para outras paragens mais ou menos longínquas.

Portanto, a razão da soma total de todos estes acontecimentos é tão simples de calcular como a regra dos três: as rendas aumentaram (relativamente) e os salários e pensões diminuíram (relativamente).

De resto, tudo nesta cultura capitalista é relativo, pois não é, minhas lindas mercês? A barbaridade da guerra é relativa (depende sempre do lado em que estás, com excepção daqueles cidadãos do mundo que em lado nenhum criam lastro). A pesporrência da hierarquia militar é relativa, como vos almirantará alguém. O direito inalienável à greve é relativo, como vos zoará cerca de dois terços das cadeiras de São Bento, donde pordesventura algumas poucas do terço restante não quiseram ainda abalar-se. O lucro do capital é também ele relativo, mesmo quando superlativo, como vos explicará qualquer investidor, por mais humilde – sem ofensa para ninguém – que seja.

Tenho 72 anos e sempre cri, asseverei e jurei que nunca na vida, nunca na história, nunca nos meus mais arrepiantes pesadelos, poderiam vir tempos piores que os desse meu alterego que dá pela alcunha de jovem magala, nessa época de campanhas africanas.

Tanto a gente se pode enganar, né? Como pode a gente se enganar tanto?

18/04/25

Borborismos sobre o ódio e a violência

(imagem sem data nem autor colhida em USFM)

As «civilizações ocidentais» levaram milénios a construir um conjunto de paradigmas sociais e políticos opostos à escravatura, ao ódio e à violência. Chamamos a isso progresso civilizacional. Esses paradigmas subvertem vários hábitos ancestrais de crueldade. Hoje, não se pode bater nos animais; não se pode bater nas mulheres; não se pode bater nas crianças. Regra geral, não se pode bater em ninguém, aproximando-nos assim (aparentemente) de uma sociedade mais pacífica e confortável.

29/12/24

Recensão: «A Revolta do Homem Branco», de Susanne Kaiser

Subtítulo: Incels, fundamentalistas e autoritários em luta por uma masculinidade política

Ed. Zigurate, 2024. Trad. de Helena Araújo.

Quando um amigo me falou de A Revolta do Homem Branco, de Susanne Kaiser, despertou-me a curiosidade. Corri a comprar o livro e iniciei sofregamente a sua leitura, fascinado pela menção de uma série de fenómenos e ideias de que eu jamais ouvira falar: incels, «masculinidade política», Qanon, Proud Boys, movimento Boogaloo, «guerreiro xamanista», etc.

23/12/24

Ventura e Montenegro: dois amantes envergonhados


Todos os regimes autoritários de pendor fascista têm dois tipos de tropas organizadas: uma tropa oficial que pode incluir vários tipos de polícias especializadas, sujeita a normas legais que na realidade estão constantemente a ser transgredidas, como se comprova historicamente; e uma tropa civil, informal, que actua como um grupo de arruaceiros sem lei nem grei.

Estas duas tropas actuam de forma combinada, de modo a instalar o medo e coarctar progressivamente todas as formas de liberdade (com uma excepção evidente: a liberdade de acção ultraliberal do grande capital).

29/10/24

Equipa de Extinção Policial

[imagem criada por IA em https://www.fotor.com]

Está a consolidar-se um novo conceito politicamente correcto: não devemos fazer generalizações. Como muitos outros do mesmo jaez, este conceito politicamente correcto mina a inteligência das coisas.

26/10/24

Palestino halal

 

Churrasco de palestino kosher numa comunidade judaica [imagem obtida por IA via www.canva.com]

Há séculos que o povo judeu é bem conhecido pelo seu jeitinho para o negócio, em particular pela capacidade comercial e de usura. Hoje, os Judeus, ou pelo menos os judeus sionistas, encontram-se em franca decadência. É lastimável: deixam passar diante das próprias barbas e capachinhos flagrantes oportunidades de negócio, não só local, mas até multinacional; não percebem que, em vez de soterrarem nos escombros dos edifícios os seus vizinhos palestinos, deviam caçá-los (de resto, eles já estão confinados num gigantesco redil, basta colhê-los), abatê-los de forma correcta (halal ou kosher) e vendê-los no mercado para consumo corrente.

10/07/24

Como matar uma cultura e transformar o paraíso num inferno


 

Para compreender a realidade em que vivemos, é indispensável estudar a actual vaga turística, que já não é apenas um fenómeno localizado em certas zonas litorais. É um tsunami que devasta todo o território, exercendo uma tremenda pressão social, económica e cultural. É um dos factores responsáveis pela degradação económica e cultural do país, por sub-reptícias formas de neocolonialismo. Arrasa a paisagem e encharca todos os aspectos da nossa vida.